sexta-feira, 30 de março de 2012

ENTRETENIMENTO




Como quem procura conchas à beira do mar,
escolho as palavras para te dizer,
quando o silêncio dos teus braços
vestir o frio dos meus ombros.

Luísa Dacosta

terça-feira, 27 de março de 2012

(DES) ARRUMAÇÕES

Algum dia teria de ser…

Não valia a pena adiar mais, teria de subir ao sótão para arrumar as “tralhas” que outrora tanto necessitara e que agora lhe atrapalhavam a vida!

Engraçados os humanos, atafulham a vida de coisas que rapidamente deixam de ser úteis e que tentam arrumar num qualquer sítio até que delas se consigam desprender um dia…

Pela parte que lhe tocava não conseguia desprender-se de nada. De todas as coisas que guardava sabia-lhes o lugar e a história.

Talvez fosse essa a razão por que adiava constantemente a subida ao sótão.

Assim que abria a porta e os seus olhos pousavam nas prateleiras e nas malas que o tempo empilhara era como se tudo aquilo de repente ganhasse uma luz própria, uma luz que lhe atravessava a alma.

Quase sem perceber como, já se achava nas mãos com o postal que o Avô lhe escrevera de Paris, onde lhe contava das maravilhas da cidade das luzes e dizia das saudades que ele e a Avó lhe tinham! E ali no baú dos brinquedos com a saia bordada a teias de aranha e pó do tempo, a boneca que fora sua confidente… E o seu caderninho! O caderno onde desenhava sonhos e esboçara os primeiros traços da vida…

Do fundo do baú parecia-lhe ainda ouvir os acordes de uma canção de Gardel,”El Dia Que Me Quieras”… Que a bailarina da caixa de música que a tia Lucy lhe tinha trazido de uma das suas viagens tentava dançar em pontas, mas que o mecanismo gasto e enferrujado já não permitiam. Não lembrava ao certo as vezes que adormecera ao som daquela melodia. Mas nunca conseguira esquecer da felicidade que sentiu no dia em que aprendeu a tocá-la no piano…

Coisas de um tempo que julgara longe…

Ali bem no canto estavam as ruínas da cadeira de baloiço que um dia pintara das cores do arco-íris com Ana. A sua Ana, ali sentada contando-lhe a sua história preferida…

Era uma vez, um Príncipe que vivia nas águas do rio e que em noites de lua cheia resolvia passear nas margens. Dizia-se que na esperança de encontrar uma Princesa que gostasse tanto do rio como ele…

Parece que o Príncipe ainda não encontrou a sua Princesa, por isso em noites de lua cheia os que acreditam em histórias encantadas conseguem ouvir os seus passos vagueando pelas margens.

E as histórias que ela conseguia ouvir só de olhar a cadeira…

Não sabia ao certo porque nunca tinha tido coragem de mandar arranjá-la. Sabia sim, porque adiava constantemente as subidas ao sótão…

É que nem sempre estava preparada para desarrumar a vida! Ou talvez hoje não fosse mesmo um bom dia para arrumações!


sábado, 24 de março de 2012

LUA CHEIA


Harvest Moon

Come a little bit closer
Hear what I have to say
Just like children sleepin'
We could dream this night away.

But there's a full moon risin'
Let's go dancin' in the light
We know where the music's playin'
Let's go out and feel the night.

Because I'm still in love with you
I want to see you dance again
Because I'm still in love with you
On this harvest moon.

When we were strangers
I watched you from afar
When we were lovers
I loved you with all my heart.

But now it's gettin' late
And the moon is climbin' high
I want to celebrate
See it shinin' in your eye.

Because I'm still in love with you
I want to see you dance again
Because I'm still in love with you
On this harvest moon





quinta-feira, 22 de março de 2012

COMO SE DESENHAM OS PERFUMES E O CALOR DA PRIMAVERA?

Raquel

Recordo o dia em que Ana, a colega do ensino especial que me apoia na sala, referiu o facto de em todas as salas por onde passava já ser outono menos na minha.

Em verdade, só não era outono ainda na sala embora já o fosse oficialmente no calendário, porque ninguém ainda o tinha trazido para dentro da sala…

Às vezes tenho alguma dificuldade em que os outros entendam que há rotinas perfeitamente desnecessárias. Por que razão há-de ser outono dentro da sala se ainda ninguém sentiu o outono? Ele haveria de chegar sem pressas e sempre na altura certa. Aquela em que todos desejássemos que assim fosse.

Já com a primavera foi diferente. Acho mesmo que esta nunca saiu da sala. Talvez porque também nunca chegou a desinstalar-se verdadeiramente no exterior. Por todos os cantos do jardim da escola houve todo o inverno, cheiros e flores de primavera. O céu de inverno esteve sempre azul e o sol quase nunca conseguiu esconder-se por entre as nuvens.

E foi numa destas manhãs, embora no calendário ainda não fosse primavera. Que a Rita durante o recreio se pôs a explicar aos colegas porque já tinha esta chegado!

Apontando os rebentos novos dos arbustos do jardim, dizia aos amigos que tal só acontecia por ser primavera. O grupo ouvia-a com atenção e descobria no muro pequenos bichinhos que pareciam também felizes por ser primavera!

 
Foi então que os meninos pediram para desenhar a primavera. E queriam fazê-lo ali mesmo no jardim…

Eu limitei-me a observá-los e a ouvir o que diziam. Se há coisa que aprendi com os meninos é que quando conversam só devo falar quando a conversa é mesmo comigo! É que aprendo tantas coisas quando estou só a ouvi-los!

A Margarida teve algumas dificuldades em segurar a folha onde desenhava, foi divertido vê-la correr atrás da folha que o vento resolveu “pôr a voar”! Descobrindo assim a leveza da folha e a intensidade do vento!

- Tens de segurá-la com força! Sugeriu o Afonso.

Uma formiguinha resolveu fazer cócegas no desenho do Rodrigo e por momentos toda a turma seguiu os seus passos até que saiu da folha e lá foi à sua vida.

Estava entretida a olhá-los, quando ouvi o Edgar perguntar:

- Como se desenham os perfumes e o calor da primavera?

Rapidamente, quase sem se fazer esperar a Raquel deu a resposta.

- Desenhas flores no ar e pintas o sol com muita cor de laranja!

Não tive a mínima dúvida, a primavera tinha mesmo chegado!



terça-feira, 20 de março de 2012

"ERA UMA HISTÓRIA PASSADA NO TEMPO DA PRIMAVERA"

Odilon Redon


Era uma vez uma mulher, velha, muito velha, velhinha mesmo…
Era uma vez uma velha
que bem contava uma história:
uma história muito linda
que ela tinha de memória.
Esta mulher, velha, muito velha, velhinha mesmo, era avó de muitos netos. Netos que, à volta do mundo, a ouviam contar.
E a avó contava, contava, devagarinho, assim a modos cansada.
Cabelos brancos de lua,
Os olhos rindo de manso:
― Era uma vez uma história…
Ai, netinhos, se eu me canso!
E os netos do mundo ouviam… ai!, mas o que ouviam os meninos do mundo? Uma história misteriosa…
Conta a história toda, toda,
Sem tirar sequer um ponto!
Pediam os meninos do mundo
Que a avó contasse o conto.
A avó sorria. Estremecia devagarinho, como se fosse uma árvore que o vento abanasse. E os netos do mundo escutavam.
É o vento da memória
Que me faz estremecer:
Meu coração lembra a história…
Escutem, que o ouvem bater.
E os netos, pelo mundo, ficavam muito calados a escutar a história do coração da avó.
Ai! Se a memória não falha!
Era uma história, era, era…
Era uma história passada
No tempo da Primavera.
E os meninos do mundo escutavam. E repetiam:
Era uma história, era, era…
Era uma história passada
Era uma história lembrada
No tempo da Primavera.
E a avó sorria contente, o coração a bater de alegria. E continuava…
A história de uma menina
Que vivia num pinhal:
Seus brinquedos eram pinhas
Em cestinhas de cristal.
Em cestinhas de cristal.
Cristal da neve dos montes.
Feita de estrelas de água,
Água gelada das fontes.
Nas agulhas dos pinheiros
Cantar o vento ela ouvia
E com o vento cantava
O canto da cotovia.
E o cuco com seu cu-cu,
O gaio com seu piu-piu
Eram caixinha de música
Como nunca ninguém viu.
E os netinhos do mundo ouviam, ouviam. E a mulher, velha, muito velha, velhinha mesmo, continuava a contar…
Cabelos brancos de lua.
Os olhos rindo de manso:
― Era uma vez uma história…
Ai! Meninos, se eu me canso!
― Continua, Avó, continua! ― pediam os meninos.
Mas deixem que eu vou contar,
Se me não falha a memória:
Também tinha pombas brancas
A menina desta história.
E rolas mansas, cinzentas,
Com o seu canto a rolar:
Tanta ave no pinhal,
Tanta asa para voar!
E pelo chão do pinhal,
Também tanta vida havia:
Formiguinhas de silêncio
Que cantavam a alegria.
E tantos outros bichinhos
De conta, conta a contar.
A viverem pelo chão
Com segredos pra escutar.
E a avó ficava-se a olhar para o chão poeirento do pinhal cheio de segredos e de caruma.
E os meninos também olhavam muito curiosos para o chão poeirento do pinhal e escutavam os segredos dos bichos pequeninos, das agulhas mortas dos pinheiros.
Mas, ai!, que a avó, de repente,
Gritou: ― Ai! O que é? Que é?
Uma verde lagartixa
Fez-me cócegas no pé!
E os netos do mundo riam, riam, com o susto (pequenino) da avó.
Mas, ai!, que a avó, de repente,
Outro gritinho soltou:
― Uma formiga, na perna,
Aqui mesmo me picou!
E os meninos do mundo riam, riam. Oh! A avó tinha tanta graça!
Agora a avó não estremecia como se o vento a abanasse, docemente, mas dava um pulinho de pulga e coçava a perna picada pela formiga.
― Ó avó, conta, conta! ― pediam os meninos a rir.
E os meninos não paravam de pedir: ― Ó avó, conta, conta!
Ai! Se a memória não falha,
Era uma história, era, era…
Era uma história passada
No tempo da Primavera!
Mas a avó parou outra vez, de repente, parou de contar. E deu outro pulinho:
Ai!, as minhas encomendas!
Rápida como uma seta,
Em meus cabelos de lua
Meteu-se uma borboleta!
E os meninos riam, riam!
― Deixa lá, avó! Continua a contar!
E a avó continuava, coçando a cabeça de luar, de onde voou uma borboleta amarela.
E a avó continuava:
Ouviu-se uma trovoada
E a menina do pinhal
Deixou cair, assustada,
A cestinha de cristal.
A cestinha de cristal,
Cristal da neve dos montes,
Feita de estrelas de água,
Água gelada das fontes.
E as pinhas, seus brinquedos,
Da cestinha de cristal,
Eram verde, verde-pinho
Que rolava pelo pinhal…
E calou-se a trovoada
E rebentaram as fontes;
E flautas de vento verde
Varriam campos e montes.
Nos ninhos abriam ovos.
Eram asas para voar:
As agulhas dos pinheiros
Já tinham novo cantar.
E a menina do pinhal
Já tinha outro brincar:
Com uma saia de giestas
Não parava de dançar…
Xaile de chuva, fininho.
Franjas de sol a voar.
A menina do pinhal
Não parava de dançar…
Com sapatos rosas bravas
Não parava de dançar:
A menina do pinhal
Já tinha outro brincar…
E depois de contar isto tudo, a mulher, velha, muito velha, velhinha mesmo, a avó dos meninos do mundo, ficou estafada. Suspirou três vezes: Uf! Uf! Uf! Ah! Ah! Ah! Mas estava tão contente! Que alegria no pinhal e pelos campos! Agora podia descansar.
E agora, meninos do mundo.
Vou dormir devagarinho.
Deitada em cama de nuvens,
Coberta de rosmaninho…
E os meninos do mundo fizeram sinal uns aos outros ― Schiu… ― para se calarem, com os dedos indicadores (os furabolos) diante da boca, em sinal de silêncio, para que a avó pudesse adormecer ― Schiu… Schiu… Schiu…
E embalaram a avó, num cantar amigo, quase calado:
Já sabemos o segredo.
Era uma história, era, era…
Era uma história passada
No tempo da Primavera!
Matilde Rosa Araújo
Histórias e canções em quatro estações
  Lisboa Editora