Eu sempre ouvira dizer que os búzios ecoam o som ressoante e longínquo do mar, mas hoje quando encostei um búzio ao ouvido não foi o som do mar azul e imenso que ouvi. O som era do mar sim, mas do mar de mim. Era como se um vento de saudade tivesse soltado a memória dos lugares das palavras dos afectos… Sem saber como, senti-me transportada a um tempo longe, o tempo em que pela primeira vez cheguei a uma escola por minha conta e risco!
Foi em Cambres, uma aldeia do concelho de Lamego.
A escola funcionava numa das salas do primeiro andar de um velho palacete, mas segundo o presidente da junta de freguesia que me esperava no portão, a casa era toda minha teria só de ter cuidado pois algumas das salas tinham o soalho em mau estado.
Confesso que me achei uma rapariga cheia de sorte, afinal quantos docentes podem orgulhar-se da sua primeira escola ser um palácio, ainda que meio arruinado é certo, mas um palácio é um palácio…
- Bom dia menina, procura alguém?
A voz que me impediu de começar a esticar os sonhos vinha do cimo das escadas. Era de uma Senhora com ar meigo e doce e que tinha idade para ser minha Avó. Disse chamar-se Albina e quando lhe disse que era a professora, pespegou-me dois beijos ao mesmo tempo que dizia:
- É tão novinha, valha-me Deus!
E era mesmo! Eu só tinha vinte e um anos!
Dona Albina indicou-me o caminho. Do enorme hall onde me encontrava, podia ver um corredor a perder de vista com salas de ambos os lados, todas estavam pintadas com cores diferentes, à medida que avançava no corredor os meus olhos iam sendo pintados como que pelas cores do arco-íris, ao fundo a escada em caracol era a porta para o céu, (assim lhe chamamos mais tarde, eu e os meninos, pois a clarabóia gigantesca dava-nos uma vista única e privilegiada de Azul Celeste!), vizinha da porta do céu era a sala onde encontraria aqueles que viriam a ser os meus primeiros companheiros de sonhos e aventuras.
A sala não era uma sala, mas antes um enorme salão pintado de azul claro com enormes janelas que chegavam ao tecto e davam para um terraço, todo ele cheio de estátuas de anjos e vasos enfeitados de mais ervas que plantas. Dentro da sala, ao lado da lareira, havia uma armadura, era o nosso guarda de ferro, é que com os móveis da escola, conviviam os antigos móveis da casa.
Esqueci-me de dizer que das enormes janelas da sala, pendiam reposteiros de veludo azul-escuro, e que neles estavam pendurados os muitos meninos que iriam ser os meus.
Dona Albina pedia que se sentassem, mas os pequenos divertidos não a ouviam, muito menos iriam ouvir-me a mim, pensei, ainda nem sequer me tinha apresentado e Dona Albina não parava de repetir que eu não parecia professora…
As tentativas da pobre senhora para conseguir a atenção do grupo não estavam a resultar, foi então que tomei lanço e me juntei aos pequenos pendurando-me no espaço de cortinado livre.
Hoje talvez não arriscasse a proeza, só por correr o risco de levar com o cortinado em cima, mas na altura não só consegui a atenção dos meninos, como a hora de baloiçar nos cortinados se tornou numa hora, absolutamente obrigatória na rotina de sala de aula.
Talvez Dona Albina tivesse pensado na altura que lhe tinha tocado na rifa, uma professora muito maluquinha, mas as ondas de riso que vi no seu rosto deixavam antever que iríamos ser grandes amigas.
Posso dizer que Dona Albina se revelou uma grande companheira de aventuras, descobri que tinha mais sonhos do que eu, é que segundo ela, os sonhos têm de aumentar com a idade.
No dia que tive de despedir-me de Dona Albina, esta presenteou-me com um pequeno saco de pano azul, vazio, disse-me que era para eu ir guardando os sonhos mais importantes, para que nunca me faltassem, porque há um dia ou outro em que estamos cansados de sonhar e precisamos de recuperar forças…