domingo, 17 de novembro de 2013

A MULHER DAS CASTANHAS





"A mulher das castanhas fabrica nuvens com as próprias mãos. É uma artesã de nuvens. Tem um carrinho com duas panelas no topo e, quando levanta um dos recipientes, liberta uma baforada doce, farrapos de tempestade que, espalhando-se a partir da Praça da Ribeira, tomam o leito do rio e se alastram pela cidade. É das suas mãos rudes que partem os nevoeiros, essas neblinas frias que, às vezes, invadem o Porto, o ensombrecem e enchem de delicadas sombras.

As mãos da mulher das castanhas são rudes, já o disse. E ásperas. Parecem ter sido talhadas da mesma matéria das árvores e das suas raízes. São como um elemento da natureza, como as pedras, grossas e decididas como as águas de um rio selvagem. Têm calos nas pontas e as unhas roídas até aos sabugos, e são atravessadas por veias volumosas e escuras, servidas de dedos firmes como garras de um urso. Não precisa de mais do que as mãos para fabricar nuvens, a mulher. Creio que lhe bastaria bater as palmas, agitar os dedos no ar ou esfregar uma mão contra a outra para que as nuvens se libertassem dos seus gestos. Fá-la-ia de qualquer modo, se quisesse.

Gosta porém, de assar castanhas, de encenar este pequeno teatro diante das gentes que vêm sentar-se na esplanada para espantar os calafrios quando o sol rasga o rigor do Outono e parece capaz de aquecer os corpos. É um modo de fabricar nuvens tão bom como outro qualquer, este.

O rosto da mulher das castanhas não é bonito. É doce, amistoso, é simples como uma tarde de Outono. E é, sobretudo, humano, sem artifícios, simpático. Mas não é bonito. Isso não é. Quando espreita para o tacho onde cozinha as suas nuvens, a mulher parece sorrir e o rosto vinca-se-lhe em leque, quase da boca até aos olhos, num ricto de desvelo, atento: profissional. Tem de fingir que assa castanhas, é esse o seu aparente labor. E, nisto, espalha nuvens no ar. Nuvens doces com cheiro de castanhas assando.

A encenação da mulher das castanhas tem o seu interesse. Trabalha como num palco, agita o tacho; às vezes, sacode-o para que as castanhas saltem, retira algumas com as mãos, queimando os dedos, chamuscando-os. Se alguém o solicita, vende as castanhas: as mãos tornam-se hábeis, esvoaçam para arrancar algumas folhas da lista telefónica, agitam-se para transformá-las num cone e nele embrulha as castanhas, meia-dúzia, uma dúzia, vinte. Quentinhas! Importa que, uma vez ou outra, grite

- Quentinhas!

com a sua voz quente de trovão, que o repita, que sorria e pareça que fala sozinha. Não gosta que se saiba que são obra sua as nuvens que visitam a cidade. Isso nunca. As gentes devem saber apenas que assa castanhas, que ali está uma mulher do povo assando castanhas, talvez garantindo o sustento da casa, o alimento dos filhos e até do marido, calhando um desses velhos ébrios que se juntam nas tascas dos antigos pescadores, dos mestres de rabelos que perderam a mão ao rio. As aparências são fundamentais, é essencial que se mantenham, não vá o fabrico das nuvens transformar-se num circo, num arraial, num chamariz de curiosos, de pacóvios, de pataratas que ali viriam para ver, fotografar, filmar, entrevistar a mulher que parece assar castanhas e, afinal, fabrica nuvens.

Gosta do que faz, a mulher. Poderia talvez fazer outras coisas igualmente delicadas e perfeitamente prescindíveis, como soprar ventos, costurar o manto da noite, manufaturar estrelas, urinar rios, agitar ondas, soltar pássaros no ar ou inspirar poetas. Podia, se quisesse. Mas gosta das nuvens. Sente uma felicidade morna quando sai empurrando o carrinho pela cidade, quando se detém nas mercearias para apreçar castanhas, comprar algumas, conversar com o merceeiro, ficar a saber as novidades do bairro. Gosta. Pronto. Gosta de vir abancar aqui, diante do rio, diante das gentes; de acender brasas rubras no carvão, ouvir os estoiros das castanhas, sentir como os frutos se aquecem e ganham uma alma que não tinham antes, como se um coração de fogo palpitasse lá dentro, animado pelo calor.

- Quentinhas!

Gosta de apregoar

- Quentinhas!

e de sorrir quando as pessoas se voltam para ver quem grita, de ver os garotos puxando pelos casacos dos pais, pedindo-lhes que comprem, que querem, que sim. De atirar pontapés aos pombos e de sacudir as gaivotas que se aproximam demais. De dizer bom dia e boa tarde. De sentir o cheiro doce das castanhas impregnando-lhe a pele, colando-se sob o sabugo das unhas roídas, pegando-se-lhe ao cabelo preto e grosso como a crina de um cavalo livre. De decidir se faz hoje dessas nuvens altas e esparsas que vão fixar-se à toa no céu azul, se um nevoeiro denso, se um teto cinzento e triste do qual, mais tarde, há-de chover. Tem que ser, às vezes.

A mulher das castanhas não gosta de chuva, mas fabricar nuvens que façam chover é parte do trabalho que faz. Tem de ser. Prefere fazer nevoeiros e espalhar neles o perfume da maresia, ou de inventar formas para as nuvens que brincam no céu pouco nublado, como dizem na televisão, mas, às vezes, sabe que tem que dar nuvens de chuva ao mundo - para que as gentes se lembrem de que a vida não é só dias de sol. Nesses dias, eu sei, guarda o carrinho das castanhas debaixo das escadas do prédio, senta-se diante do televisor, no velho sofá, e fica assistindo ao trabalho dos outros: terramotos, tempestades, furacões, bestiais canículas. Enquanto isso, toma chá."


Manuel Jorge Marmelo, “O Profundo Silêncio Das Manhãs De Domingo”