"A mulher das castanhas fabrica nuvens com as
próprias mãos. É uma artesã de nuvens. Tem um carrinho com duas panelas no topo
e, quando levanta um dos recipientes, liberta uma baforada doce, farrapos de
tempestade que, espalhando-se a partir da Praça da Ribeira, tomam o leito do
rio e se alastram pela cidade. É das suas mãos rudes que partem os nevoeiros,
essas neblinas frias que, às vezes, invadem o Porto, o ensombrecem e enchem de
delicadas sombras.
As mãos da mulher das castanhas são rudes, já o disse.
E ásperas. Parecem ter sido talhadas da mesma matéria das árvores e das suas
raízes. São como um elemento da natureza, como as pedras, grossas e decididas
como as águas de um rio selvagem. Têm calos nas pontas e as unhas roídas até
aos sabugos, e são atravessadas por veias volumosas e escuras, servidas de
dedos firmes como garras de um urso. Não precisa de mais do que as mãos para
fabricar nuvens, a mulher. Creio que lhe bastaria bater as palmas, agitar os
dedos no ar ou esfregar uma mão contra a outra para que as nuvens se
libertassem dos seus gestos. Fá-la-ia de qualquer modo, se quisesse.
Gosta porém, de assar castanhas, de encenar este
pequeno teatro diante das gentes que vêm sentar-se na esplanada para espantar
os calafrios quando o sol rasga o rigor do Outono e parece capaz de aquecer os
corpos. É um modo de fabricar nuvens tão bom como outro qualquer, este.
O rosto da mulher das castanhas não é bonito. É doce,
amistoso, é simples como uma tarde de Outono. E é, sobretudo, humano, sem
artifícios, simpático. Mas não é bonito. Isso não é. Quando espreita para o
tacho onde cozinha as suas nuvens, a mulher parece sorrir e o rosto
vinca-se-lhe em leque, quase da boca até aos olhos, num ricto de desvelo, atento:
profissional. Tem de fingir que assa castanhas, é esse o seu aparente labor. E,
nisto, espalha nuvens no ar. Nuvens doces com cheiro de castanhas assando.
A encenação da mulher das castanhas tem o seu
interesse. Trabalha como num palco, agita o tacho; às vezes, sacode-o para que
as castanhas saltem, retira algumas com as mãos, queimando os dedos,
chamuscando-os. Se alguém o solicita, vende as castanhas: as mãos tornam-se
hábeis, esvoaçam para arrancar algumas folhas da lista telefónica, agitam-se para
transformá-las num cone e nele embrulha as castanhas, meia-dúzia, uma dúzia,
vinte. Quentinhas! Importa que, uma vez ou outra, grite
- Quentinhas!
com a sua voz quente de trovão, que o repita, que
sorria e pareça que fala sozinha. Não gosta que se saiba que são obra sua as
nuvens que visitam a cidade. Isso nunca. As gentes devem saber apenas que assa
castanhas, que ali está uma mulher do povo assando castanhas, talvez garantindo
o sustento da casa, o alimento dos filhos e até do marido, calhando um desses
velhos ébrios que se juntam nas tascas dos antigos pescadores, dos mestres de
rabelos que perderam a mão ao rio. As aparências são fundamentais, é essencial
que se mantenham, não vá o fabrico das nuvens transformar-se num circo, num
arraial, num chamariz de curiosos, de pacóvios, de pataratas que ali viriam
para ver, fotografar, filmar, entrevistar a mulher que parece assar castanhas
e, afinal, fabrica nuvens.
Gosta do que faz, a mulher. Poderia talvez fazer
outras coisas igualmente delicadas e perfeitamente prescindíveis, como soprar
ventos, costurar o manto da noite, manufaturar estrelas, urinar rios, agitar
ondas, soltar pássaros no ar ou inspirar poetas. Podia, se quisesse. Mas gosta
das nuvens. Sente uma felicidade morna quando sai empurrando o carrinho pela
cidade, quando se detém nas mercearias para apreçar castanhas, comprar algumas,
conversar com o merceeiro, ficar a saber as novidades do bairro. Gosta. Pronto.
Gosta de vir abancar aqui, diante do rio, diante das gentes; de acender brasas rubras
no carvão, ouvir os estoiros das castanhas, sentir como os frutos se aquecem e
ganham uma alma que não tinham antes, como se um coração de fogo palpitasse lá
dentro, animado pelo calor.
- Quentinhas!
Gosta de apregoar
- Quentinhas!
e de sorrir quando as pessoas se voltam para ver quem
grita, de ver os garotos puxando pelos casacos dos pais, pedindo-lhes que
comprem, que querem, que sim. De atirar pontapés aos pombos e de sacudir as
gaivotas que se aproximam demais. De dizer bom dia e boa tarde. De sentir o
cheiro doce das castanhas impregnando-lhe a pele, colando-se sob o sabugo das
unhas roídas, pegando-se-lhe ao cabelo preto e grosso como a crina de um cavalo
livre. De decidir se faz hoje dessas nuvens altas e esparsas que vão fixar-se à
toa no céu azul, se um nevoeiro denso, se um teto cinzento e triste do qual,
mais tarde, há-de chover. Tem que ser, às vezes.
A mulher das castanhas não gosta de chuva, mas
fabricar nuvens que façam chover é parte do trabalho que faz. Tem de ser.
Prefere fazer nevoeiros e espalhar neles o perfume da maresia, ou de inventar
formas para as nuvens que brincam no céu pouco nublado, como dizem na
televisão, mas, às vezes, sabe que tem que dar nuvens de chuva ao mundo - para
que as gentes se lembrem de que a vida não é só dias de sol. Nesses dias, eu
sei, guarda o carrinho das castanhas debaixo das escadas do prédio, senta-se
diante do televisor, no velho sofá, e fica assistindo ao trabalho dos outros:
terramotos, tempestades, furacões, bestiais canículas. Enquanto isso, toma
chá."
Manuel Jorge Marmelo, “O Profundo Silêncio Das
Manhãs De Domingo”