Algum dia teria de ser…
Não valia a pena adiar mais, teria de subir ao sótão para arrumar as “tralhas” que outrora tanto necessitara e que agora lhe atrapalhavam a vida!
Engraçados os humanos, atafulham a vida de coisas que rapidamente deixam de ser úteis e que tentam arrumar num qualquer sítio até que delas se consigam desprender um dia…
Pela parte que lhe tocava não conseguia desprender-se de nada. De todas as coisas que guardava sabia-lhes o lugar e a história.
Talvez fosse essa a razão por que adiava constantemente a subida ao sótão.
Assim que abria a porta e os seus olhos pousavam nas prateleiras e nas malas que o tempo empilhara era como se tudo aquilo de repente ganhasse uma luz própria, uma luz que lhe atravessava a alma.
Quase sem perceber como, já se achava nas mãos com o postal que o Avô lhe escrevera de Paris, onde lhe contava das maravilhas da cidade das luzes e dizia das saudades que ele e a Avó lhe tinham! E ali no baú dos brinquedos com a saia bordada a teias de aranha e pó do tempo, a boneca que fora sua confidente… E o seu caderninho! O caderno onde desenhava sonhos e esboçara os primeiros traços da vida…
Do fundo do baú parecia-lhe ainda ouvir os acordes de uma canção de Gardel,”El Dia Que Me Quieras”… Que a bailarina da caixa de música que a tia Lucy lhe tinha trazido de uma das suas viagens tentava dançar em pontas, mas que o mecanismo gasto e enferrujado já não permitiam. Não lembrava ao certo as vezes que adormecera ao som daquela melodia. Mas nunca conseguira esquecer da felicidade que sentiu no dia em que aprendeu a tocá-la no piano…
Coisas de um tempo que julgara longe…
Ali bem no canto estavam as ruínas da cadeira de baloiço que um dia pintara das cores do arco-íris com Ana. A sua Ana, ali sentada contando-lhe a sua história preferida…
Era uma vez, um Príncipe que vivia nas águas do rio e que em noites de lua cheia resolvia passear nas margens. Dizia-se que na esperança de encontrar uma Princesa que gostasse tanto do rio como ele…
Parece que o Príncipe ainda não encontrou a sua Princesa, por isso em noites de lua cheia os que acreditam em histórias encantadas conseguem ouvir os seus passos vagueando pelas margens.
E as histórias que ela conseguia ouvir só de olhar a cadeira…
Não sabia ao certo porque nunca tinha tido coragem de mandar arranjá-la. Sabia sim, porque adiava constantemente as subidas ao sótão…
É que nem sempre estava preparada para desarrumar a vida! Ou talvez hoje não fosse mesmo um bom dia para arrumações!
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