quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Ó AVÔ...COMO É O MAR LONGE?


(quadro da pintora brasileira Duclos)


Era neta e filha de pescadores. As suas raízes, como as das algas, estavam naquela imensidão de águas sem fim. Rosina sabia o mar como os seus dedos. Seu regalo eram as conchinhas, estrelas, ouriços, tintureiros, buzinas, que marcavam o rasto das ondas, onde, paciente, descobria seus tesouros.


Seus brincares as fontes, os corguinhos, os jardins da maré vaza, transparentes de areia lavada e quieta, riscados por cardumes gelatinosos, onde floriam, roxas, vermelhas, verdes, as anémonas e o mexilhão, aberto, oferecia o ferrete, azul, das suas conchas naufragadas.


Quando ia ajudar a varar o barco, o avô entregava-lhe a gamela das fanecas, que não iam à lota, as da ceia. E, quando o caminho de casa, ele lhe pegava ao colo, Rosina pedia:
- Vocemecê não me leva ao mar, avô ?
- Tu és da terra. O nosso Quim é que se há-de afazer a Ír connosco, quando deitar mais corpo.
- Ó avô, mas eu também queria ir...
E o avô ria daquela teimice de menina. Rosina amuava: já tão espigada e fazedeira e ninguém a tomava a sério... À hora da ceia, esquecida do amuo, insistia:
- Ó avô, como é o mar longe?
- Como queres tu que seja, rapariga! Como o daqui. Azul, sempre igual.


Aquilo dizia o avô para lhe calar a boca e poder falar à vontade com o pai das más pescarias e do tempo. O avô não era mentideiro e sabia que o mar não era sempre azul. E então o mar cinza, pescoço de pombo? E o mar branco, asa de gaivota? E o mar lombo de ruivo, ao entardecer? E o mar azul, azuis muitos, de mexilhão aberto? E o mar verde, verdes limos? Perigos teria. Havia de ter, pois sempre rezavam pêlos que andavam sobre as ondas. E marés havia que não eram marés de mar, quando o avô e o pai rondavam a praia, se sentavam ao pé do barco, mas não se faziam às ondas, que rebentavam, ferventes, na enseada do sul, toldada pela ceguidão da névoa.


Depois clareava. Longe, passavam os navios, ao rés da linha, em que o mar tocava o céu. Que haveria para além? Nisso cismava Rosina. Deixara, porém de fazer perguntas. À noite, fechava-se, como uma anémona, quando se lhe toca e punha-se a sonhar. Fantasiava a outra margem da imensidão, onde molhava os pés à beirada. A barranha do penedo seria loura, como um favo. Lapas empenachadas de limo e botelho abririam boquinhas sôfregas, com o movimento das ondas, miúdas, de flor branca, empurradas por um ventinho brincalhão, que despenteasse as guelras vermelhas e denteadas das algas. Cardumes de peixes viriam comer-lhe à mão, como pintos. E brincaria aos quatro cantinhos com as pulgas que eternamente jogam aquele jogo no areal. Todas as noites, como quem acrescenta um beijinho novo à fiada de antigo colar, afeiçoava aquele sonho. Partia, numa barca de espumas feita, a todo o vento, para a outra margem do mar, para o longe sem fim, de além e distância. Todas as noites deixava a enseada, as camas de sargaço, estendidas a secar e se fazia às ondas e ao sonho. Como encontraria o caminho?


Ora, as estrelas subiriam à tona para lhe indicar seu rumo, sem norte nem sul. E se friasse? Os peixes ruivos ou as fanecas lhe trariam um xalinho, arrendado, de chorão do mar, para agasalho e acabaria por chegar à outra margem, cheia de rochas-grutas, onde o seu nome: Rosina-ina-ina, som de bazio ficasse.


Quando o avô e o pai fumavam, cismentos, a menina desdobava, lenta, o novelo dos sonhos e partia na sua barca de espumas.


E todas as noites adormecia, antes de chegar à outra margem do mar.


Luísa Dacosta, A-Ver-O-Mar,Crónicas

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